Teoria da“Dominância” Parte 2: não só errada, mas prejudicial aos cães
- Haroldo Fala
- 21 de set. de 2021
- 10 min de leitura
Prejudicial porque?
No último texto vimos de onde surgiu toda essa ideia de “dominação” nos cães domésticos, e vimos que ela está completamente equivocada, e já foi provada errada várias vezes através de décadas de estudos científicos.
Mas porque o estilo de treinamento precisa mudar e deixar de lado o conceito de “dominância”? Se adestradores profissionais tem usado as mesmas técnicas por anos e elas funcionam, porque é necessário que as pessoas percebam que é mito, e mudem sua maneira de se relacionar com seus cães? A resposta está nos efeitos a longo prazo do treinamento/ adestramento “tradicional”.
Primeiro vamos deixar claro os métodos de treinamento que podem ser usadas com cães, e especificar como o treinamento tradicional funciona.
O condicionamento pavloviano (ou clássico) e o condicionamento operante são dois grandes métodos de aprendizado e englobam o que muitas pessoas fazem na tentativa de educar seus cães. Esses dois métodos representam diferentes modos de apresentar consequências de comportamento. De modo geral, adestramento de cães busca eliminar comportamentos indesejados e aumentar os comportamento desejados. É quase senso comum que se um comportamento tiver uma consequência desagradável, o sujeito buscará evitar esse comportamento, e se o resultado for positivo o sujeito tem tendência a repetir esse comportamento.

Punição tem uma conotação ruim, mas não necessariamente é uma coisa negativa, assim como reforço tem uma conotação de coisa boa, mas não necessariamente é positiva. Aqui punição é usada quando o objetivo é eliminar um comportamento, e o reforço quando o objetivo é incentivar um comportamento. As palavras “Positivo” e “Negativo” nessa tabela dizem respeito a acrescentar, ou retirar um estímulo, não sobre ser bom ou ruim.
Com isso em mente, no primeiro quadrante, “Reforço Positivo” é introduzir um estímulo agradável para recompensar um comportamento desejado, por exemplo, dar um petisco, um carinho ou um brinquedo como prêmio para um comportamento que você quer que o cachorro repita.
“Punição Positiva” é a introdução de um estímulo aversivo, que pode ser um barulho que ele não goste, bater no cachorro com jornal ou usar uma intimidação verbal, gritar etc, é o acréscimo de uma coisa ruim.
“Reforço negativo” é quando você premia o cachorro retirando uma coisa ruim, por exemplo, o enforcador. Quando o cachorro não puxa a guia, o enforcador afrouxa e o estímulo negativo que é a sensação de estrangulamento some. Nestes casos é necessário que haja um estímulo ruim introduzido antes de começar o treinamento.
E finalmente, a “Punição negativa” é quando você priva o cachorro de algo que ele gosta. Apesar de ser o quadrante que soa pior, pela conotação das palavras, é tão simples e inofensivo como não dar atenção ao cachorro se ele pular em você. Ou parar de andar quando ele puxar a guia.
Vendo as técnicas citadas podemos perceber que existem duas que são desagradáveis pros cachorros, e duas que são mais amigáveis. O treinamento tradicional sempre usa Punição positiva. E mesmo que combinada com Reforço positivo, o uso dessa técnica pode trazer inúmeros malefícios para a vida do cachorro.
De maneira geral, o treino “tradicional” se apóia muito no condicionamento clássico, e o mais o importante aqui é que treinadores “tradicionais” usam como principal ferramenta, técnicas coercivas, de punição física e por vezes violentas.
Afinal, se os donos acreditam na teoria da dominância, que diz que o cachorro está sempre lutando para “alcançar status” ou “controlá-los” ou “ser o chefe”, ele naturalmente tende a usar técnicas de treinamento coercivas (e até violentas) porque sente seu status social dentro de casa ameaçado pelo próprio cão.
Algumas técnicas usadas por treinadores tradicionais que se encaixam em punição física ou coerção, são: jogar um objeto perto ou no lombo do cachorro; gritar, bater os pés ou causar um som amedrontador; usar posturas ameaçadoras; bater no cachorro com as mãos ou com objetos; esfregar o cara do cachorro no “erro”; segurar o cachorro pelo pescoço ou focinho, etc.
Educar o cachorro com Punições físicas ou coerção causa a indução de estados emocionais negativos no cão, como por exemplo medo e ansiedade para inibir um comportamento indesejado, mas com isso existe o risco de criar ainda mais comportamentos indesejados ou pior, ter um efeito negativo permanente no bem-estar do cão de inúmeras maneiras, como:
Aumento de estado constante de medo e ansiedade.
A maioria dos comportamentos problemáticos, incluindo a agressão, se desenvolve porque o cão aprende a mostrar sinais em resposta a uma possível ameaça. Causar mais ansiedade ao cão aplicando uma punição positiva não atingirá o objetivo de ensinar: na verdade, quase inevitavelmente fará com que o cão se torne mais medroso e reativo naquele contexto.
A aplicação de punições positivas até pode inibir temporariamente um comportamento indesejado, mas acaba sendo um tiro no pé uma vez que ao longo do tempo, só serve para aumentar o estado de vigilância, medo e ansiedade, tornando o cão ainda mais propenso a apresentar comportamentos indesejados.
Como as pessoas geralmente procuram por “consertos instantâneos”, essa abordagem pode parecer uma cura milagrosa e parecer impressionante na TV, mas não resolve a raiz do comportamento indesejado. Como o cão continua com medo da ameaça original causada pela punição ele, na verdade, estará mais ansioso porque agora além de estar preocupado com a ameaça original ele se preocupa com o que seu dono fará com ele nesse contexto.
O comportamento muitas vezes se repetirá ou o cão começará a apresentar respostas comportamentais de defesa diferentes para evitar que a ameaça se desenvolva.
Isso faz sentido mesmo se você pensar de uma perspectiva humana: por exemplo, se você tem medo de aranhas, você responderá a esse medo tentando evitar o contato próximo com elas. Agora imagine que alguém o arrastou até uma aranha, puxando-o até o aracnídeo pelo pescoço até que estivesse sufocando você te segurasse ali até que você parasse de lutar - você se sentiria diferente em relação as aranhas, ou você estaria preocupado a presença da pessoa que tentou “curar” você?
Estresse e Bloqueio de Aprendizagem
Usar técnicas baseadas em punições positivas severas para mudar o comportamento é frequentemente contraprodutivo. Existe uma relação complexa entre as respostas fisiológicas ao estresse e a capacidade de aprendizado, e em níveis mais altos ou mais crônicos realmente inibem a capacidade dos animais de aprender e particularmente de consolidar e recuperar memórias (Joels et al., 2006; Mendl, 1999). Pesquisas sugerem que altos níveis de estresse podem influenciar a capacidade de um cão aprender (Walker et al., 1997), portanto, a aplicação de punições positivas também podem resultar em uma resposta ao estresse que impede o aprendizado.
Risco de o cão associar a punição com outra coisa, que não o comportamento a ser corrigido
Respostas ansiosas e medrosas parecem ocorrer particularmente quando a punição é mal sincronizada com a ação do animal (Schalke et al., 2005), em outras palavras, quando a punição é mal cronometrada.
Após um evento significativo, como a aplicação de pressão de uma coleira do tipo enforcador, o cão tentará identificar quais eventos podem ter causado essa ocorrência, seja relacionada à sua própria atividade ou às coisas que acontecem no ambiente.
Isto significa que, embora o treinador possa querer que o cão associe o puxão da guia com a pressão no pescoço, o cão pode associar o estrangulamento a algo completamente diferente.
Muitas vezes, por exemplo, os cães associam a pressão de um enforcador com a palavra “vem”, mas não com o puxão.
Então, quando eles ouvem “vem” eles ficam tensos e se preparam para a pressão. Na prática, qualquer outra coisa presente quando a punição é usada pode servir como um estímulo discriminativo para que o cão associe a punição (Polsky, 1994).
Em outras palavras, há um risco real muito alto de uma associação indesejada entre a punição desagradável e alguns estímulos coincidentes, como a presença de uma pessoa ou outro animal.
Mesmo quando um cão é “pego em flagrante” e punido, ele ou ela ainda pode não associar a punição com o comportamento indesejável.
Isso é comumente visto, por exemplo, quando filhotes de cachorro são agredidos por seus donos quando erram o lugar do xixi em ambientes fechados: eles não associam a punição com o local onde estão fazendo xixi, mas em vez disso, com a presença do dono na hora do ato, para ele então basta encontrar um lugar para fazer xixi longe do dono, e isso leva a cães que só fazem xixi quando o dono está ausente ou que se aliviam apenas em lugares escondidos, como atrás da geladeira, ao invés de aprender a fazer isso do lado de fora quando sair.
Além disso, níveis inadequados de punição podem resultar num medo intenso e evitar a localização ou ato, por ex. o jardim dos fundos, ou pior, voluntariamente segurar suas necessidades que pode levar a inúmeros problemas de saúde. A dificuldade em corrigir erros ao usar métodos aversivos é significativa, considerando as oportunidades para associações não intencionais e o potencial desenvolvimento do medo.
Aumento da agressão e risco para os donos
Outra desvantagem do uso de punições positivas em cães como método de treinamento é o risco de provocar ou piorar comportamentos agressivos existentes. Por exemplo, filhotes que são treinados usando abordagens baseadas em punição física terão um risco maior de ter medo do movimento da mão de pessoas quando adultos, e têm um risco maior de morder como reação de defesa (Hunthausen 2009).
Embora alguns autores tenham defendido o uso de punição positiva no tratamento de certos tipos de agressão em cães, como a dor é uma causa primária de agressão (Johnson, 1972), é claro que existe um potencial para um cão responder agressivamente a uma pessoa ou animal na aplicação de um estímulo doloroso.
A crença equivocada na teoria da “dominação" pode levar os donos a usar tipos punitivos de treinamento que predispõem à agressão (De Keuster e Jung, 2009). Por exemplo, nos Estados Unidos em 2007 59% das mordidas de cães ocorreram como conseqüência de donos tentando disciplinar seus cães.
Os donos devem ser particularmente cautelosos ao usar técnicas de coerção, confronto ou punição física com cães que tenham uma resposta agressiva estabelecida. A agressão se desenvolve como uma resposta à uma ameaça percebida, seja para si mesmo ou para um recurso que ele valoriza.
No entanto, uma vez estabelecidos, os cães geralmente terão uma forte expectativa de que seu comportamento agressivo será bem-sucedido para evitar a ameaças. Tentar parar ou interromper essa resposta tem um alto risco de que o cão mostre um aumento no nível de agressão. Pode ser que o cão aprenda a esconder os sinais que nos informam de um ataque iminente
Criar confusão sobre qual comportamento esperado
Imagine que você precisava aprender um novo comportamento como um novo funcionário, mas para ensinar esse comportamento, seus novos colegas apenas gritam com você quando você fez a coisa errada. Você pode tentar uma série de diferentes respostas possíveis, mas nunca pode identificar exatamente o que eles querem que você faça, porque eles estão tentando punir todas as possíveis respostas erradas,..l que são todas, menos a certa, que só existe uma.
Quando os donos confiam principalmente na punição para corrigir comportamentos inadequados, é muito difícil para um cão descobrir o que deve fazer ao invés do comportamento que ele está apresentando. Como também aconteceria com você em seu local de trabalho, os cães tenderão a se tornar muito frustrados e mostrar uma das conseqüências comportamentais dessa emoção que é a mais comum para cães: a agressão, ou então, podem desistir completamente e parar de tentar qualquer tipo de comportamento, mesmo os de um cão saudável, se tornando depressivos, sedentários e em casos extremos, até letárgicos.
Risco de ferimentos físico
Existe também um risco acrescido de lesões físicas no cão que recebe punições físicas. Coleiras enforcadores, coleiras com pinos, chutes, tapas etc podem resultar em lesões laríngeas, esofágicas, tireoidianas e traqueais (Brammeier et al. 2006). Ou até fraturas, feridas e infecções.
Mas se essas técnicas causam tantos problemas, porque profissionais insistem em usá-las?
Bom uma resposta é que é mais rápido. Controlar o comportamento do cão com estímulos aversivos, agressão física, intimidação verbal ou pressão psicológica surte efeitos rapidamente, é verdade. O cachorro é um animal, e fará de tudo para se sentir seguro. Na presença de uma pessoa que seja uma ameaça para ele, seja física ou mentalmente, ele vai tender a parar de apresentar o comportamento que lhe está causando sofrimento. Mas isso apenas mascara o problema e não resolve a causa do comportamento indesejado.
Um cachorro que late e rosna para outros cães e recebe uma punição similar as listadas anteriormente, de uma coleira de eletrochoques por exemplo, toda vez que reage aos outros cachorros, pode em 20 minutos parar de rosnar e latir. Mas este cachorro estava apresentando essas reações à outros animais por um motivo, seja por medo, ansiedade ou outro problema de relacionamento com outros cães. Mas por meio dessa técnica, tudo que será alcançado é um cachorro que, por medo de sentir dor, para de reagir e se comunicar. Ele não deixou de ter medo de outros cães, apenas aprendeu a ter mais medo da coleira.
Essas soluções “relâmpago” que não resolvem a raiz do problema são a razão de tantas consequências ruins do treinamento tradicional. Um cachorro que foi ensinado a não mostrar sinais que são parte do seu vocabulário natural de comunicação que, por exemplo, antecedem uma mordida, da próxima vez não vai dar sinal algum, vai apenas morder. E se for punido por morder pode se tornar um cachorro medroso que sente o tempo todo que pode ser atacado pelo seu dono, sem nem poder se defender.
Há casos em que cachorros são hospitalizados por esconder sinais de doenças, pararem de defecar ou urinar, ou por terem sido atacados por outros cães porque aprenderam a não mostrar sinais de comunicação naturais aos cães. Tudo por conta de punições positivas para castigar comportamentos indesejados.
Precisamos abrir os olhos para os malefícios do treinamento baseado na necessidade de forçar um status de dominação sobre os cães domésticos, tanto para a saúde física e mental do cachorro, quanto para preservar e cultivar uma relação saudável com nossos animais de estimação.
As técnicas que envolvem intimidação, coerção e violência podem dar a ilusão de resolverem o problema temporariamente, mas só é possível moldar o comportamento dos cães com treinamento e orientação constante, e se você assumiu a responsabilidade de ter um cachorro, é necessário entender porque não se deve usar as punições positivas que dão resultados imediatistas, e se esforçar para entender o comportamento dos cães, para podermos educa-los da maneira mais humana possível.
Muitas pessoas só conhecem o treinamento tradicional. E acabam traumatizando ou piorando o comportamento de seus cães sem querer. É fato que a maioria dos donos usa essas técnicas não por crueldade, mas por falta de informação.
O treino chamado “tradicional” é baseado em noções ultrapassadas sobre o comportamento natural de lobos, que foi indevidamente aplicado aos cães domésticos. Mas a ciência e pesquisa sobre o comportamento de cães domésticos avançou muito desde os tempos em que Cesar Millan era o treinador mais pop do mundo. E outra hora vamos falar sobre Karen Pryor, um dos maiores nomes na introdução do treino com clicker, ou o que hoje é popularmente chamado de "Treino Positivo".
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